domingo, novembro 30

A Cobra


Charles Avery «Untitled - The Grass is Alive»
triptych (detail), 2005
(pencil and gouache on paper)
*
A COBRA

E então o Senhor disse à serpente:

Serás maldita e deslizarás.
Todos os animais domésticos e ferozes te
odiarão. Rastejarás, serás
motivo de escândalo para as outras criaturas.
Terra comerás quotidiana.
Alimentar-te-ás das presas que tomares
por tua manha. Abrirás
desmedidamente a boca para comer ―
pois o fruto defeso hás revelado.

Habitarás da terra os lugares quentes,
contra a neve e o gelo não prevalecerás,
pois te arrefeço o sangue;
o inverno te será adverso e assim
todos os rigores da mulher e sua descendência
que, com pavor dos teus dentes astutos,
procurará esmagar-te a cabeça
e fracturar-te a espinha com o calcanhar
e assim a teus filhos e aos filhos
de teus filhos. E ―
pois inventaste a nudez ―
a pele despirás pela vida fora.

Meus desígnios goraste e o pecado
inauguraste ― pelo que
tuas próprias escamas te serão prisão,
o parto te será redondo e desconforme,
te secará um pulmão,
crescerás em peçonha e em vergonha

e assim seja até à
consumação dos séculos.

(A.M. Pires Cabral)
*

(in «Algures a Nordeste», 1974) *
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Nota: Charles Avery em exposição na Scottish National Gallery of Modern Art, em Edimburgo, na Escócia, UK.
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