Do Tempo ao Coração I e II, Equinócio
Boris Anisfeld (1879-1973)
«The Golden Tribute» 1908
(oil on canvas)
- Private Collection -
DO TEMPO AO CORAÇÃO
Do cântico de amor gerado na Suméria
ao grande strip-tease a que se entrega Europa
Da nuca de Afrodite aos artelhos de Artémis
Da lascívia da cabra à lascívia da cobra
Do sabor a limão que há também no remorso
ao riso da romã que vem no solstício
sobrevoando à noite o século dezoito
interrogando a cor de cada suicídio
De perto de Heidelberga ao porto de Antuérpia
Da sagração de Sade à sonoterapia
De uma rosa a uma cruz. De uma cruz a uma ténia
Do secreto Neptuno à caça submarina
Das rugas de um pescoço em redor dos quarenta
ao braço que tão liso aparenta catorze
De uma igreja barroca a um remo * uma rena
Da âncora ao farol no alto de uma torre
Da mais velha invenção à mais nova tortura
Do tempo ao coração * Do Boeing à quadriga
De não te pedir muito * apenas que não fujas
a sentir-te de mais no céu da minha vida
De um jardim de Munique onde nada se passa
como o Nymphenburg onde tudo é possível
à brisa que segrega uma espécie de Arcádia
à onda que traslada um verso de Virgílio
De milhões e milhões que rebentam com fome
ao dom do caviar para abrir o apetite
Do canto gregoriano à música electrónica
Dos berros da oração ao silêncio de um grito
De tanto a muito mais * De tudo a quase nada
Só não sei que tecido oscila entre os extremos
Se apenas o amor * Se o vulto da amada
Se trevas * Se uma luz * Se o tempo em que vivemos
*
Grigory Gluckmann (1898-1973)
«Reclining Nude» ca. 1920-30
(oil on panel)
- Private Collection -
*
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EQUINÓCIO
*
Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro * o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato
Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gim enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena
Chega-se a este ponto * Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela * Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo
Rola mais um trovão * Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe
Em que apetece um ombro * o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato
Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gim enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena
Chega-se a este ponto * Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela * Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo
Rola mais um trovão * Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe
*
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«Leda and the Swan» 1917
(watercolour, bodycolour, pen and ink on paper)
- Private Collection -
- Private Collection -
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DO TEMPO AO CORAÇÃO
E volto a murmurar * Do cântico de amor
gerado na Suméria * às novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas que sempre conservo entre as coisas mais puras
De uma genebra a mais num bar de Amesterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas * tantas mãos * que nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecem
De ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
De outros muros que só aparecem aqui
ao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos dele
Da pertinaz presença * E da longevidade
do corvo * do chacal * do louco * do eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minuto
Do que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempo * ao coração minado pelo cancro
Dos rins * ao infinito incubado na cólera
Do tempo ao coração * mas com pausa na pele
como Roma by night entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não * que já não somos dois
Dos rins ao infinito * A este * que não outro
Ao que rola dos rins * Ao que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde
Da curva de entretanto * à entrada do poço
De soletrar em mim * a ler * nas tuas mãos
como é rápido * e lento * e recto * e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.
(David Mourão-Ferreira) *
E volto a murmurar * Do cântico de amor
gerado na Suméria * às novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas que sempre conservo entre as coisas mais puras
De uma genebra a mais num bar de Amesterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas * tantas mãos * que nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecem
De ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
De outros muros que só aparecem aqui
ao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos dele
Da pertinaz presença * E da longevidade
do corvo * do chacal * do louco * do eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minuto
Do que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempo * ao coração minado pelo cancro
Dos rins * ao infinito incubado na cólera
Do tempo ao coração * mas com pausa na pele
como Roma by night entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não * que já não somos dois
Dos rins ao infinito * A este * que não outro
Ao que rola dos rins * Ao que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde
Da curva de entretanto * à entrada do poço
De soletrar em mim * a ler * nas tuas mãos
como é rápido * e lento * e recto * e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.
(David Mourão-Ferreira) *
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(in «Do Tempo ao Coração», 1966)
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Nota: As telas aqui representadas fazem parte de um conjunto de obras de pintores russos dos séculos XIX e XX, a serem leiloadas nos próximos dias 25 a 27 de Novembro, em Londres, pela casa MacDougall's.
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Nota: As telas aqui representadas fazem parte de um conjunto de obras de pintores russos dos séculos XIX e XX, a serem leiloadas nos próximos dias 25 a 27 de Novembro, em Londres, pela casa MacDougall's.
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Etiquetas: David Mourão-Ferreira (1927-1996), Pintores russos dos séc. XIX e XX
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