terça-feira, junho 3

jorge de sena na ilha de moçambique


Herbert Brandl «Untitled», 2006
(oil on canvas)
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jorge de sena na ilha de moçambique

debruçado a esta janela quinhentista sobre a água lilás
do pôr do sol, jorge de sena repousava os olhos, ainda ofuscado
pela brancura da pedra e de tanta memória, gastando-se
até onde pobremente o camões se arrastara.

fora uma tarde desmedida
de amargos deslumbramentos, de intimidades fragmentárias, de
coisas a ressoar («e nunca pude saber dele»
diz-se, na década oitava, de um manuscrito, roubado).

jorge de sena andou por aqui enxugando o suor com um enorme lenço
e rugidos na alma, e nem viu as acácias, o seu fogo insolente, as mulheres
*************************************** [de máscara branca,
crispado entre os amigos nesta escala de passagem
de nada para parte nenhuma, por ruelas e pátios de má fortuna
********************************************[abandonados.

viu sim os rebocos desfeitos pela traça do tempo, tanta textura de flores,
**********************************************[esboroadas,
tanto mapa perdido de aventurosos destinos,
e viveu tudo isso como se o próprio orgulho a prumo, com o seu nobre olhar
de exilado, fosse uma altiva insensatez.

sentia essa embargada transparência, um tão ágil amor desesperado,
e tinha de ter raiva: nem há neutralidades anódinas, é-se apanhado
por estas evidências a crescerem em nós como o coral insuportável
ramificando-se desta luz, desta água, desta força honrada do lugar.

a tarde foi caindo até ao cinzento escuro
e era parda a vela subitamente içada (ou rósea ainda?)
de algum barco pequeno cuja sombra partia. como é possível o trabalho
de peregrinar sem vir aqui? possível que isto vá morrer?

«o coração da vida está na lucidez das cicatrizes
que nos povoam» disse-lhe circe na praia transformando-o
no vulto que descia a correr as escadas da prelazia até
à misericórdia, ao palácio do governador, à rua dos arcos,

desprezando a quem implorava. ou não desceria
porque lá esteve antes, mas que interessa?,
se andava por aqui crivado de dívidas e de versos
e lhe haviam tirado o seu parnasso e foi furto notável

e muito mais do que isso é comover-nos
este adobe de lembranças a destempo, esta severa condição
de um jogo limpo em que o real
só é dizível porque algumas palavras o destroem

e algumas palavras lhe resistem. anonimamente
jorge de sena voltou a pagar os duzentos cruzados da dívida:
camões parte amanhã mas continua aqui.
nem é desterro nosso que assim seja.

(Vasco Graça Moura)
*

in «Os rostos comunicantes», 1984

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