MORITUR
Rui Melo «Sem Título» 2005, óleo sobre tela
MORITUR
Quando morrermos não saberemos
o que seremos
se som se cheiro se luz
quando morrermos é o tempo para recomeçarmos
tudo de novo
pois nesta vida o que nos resta é aquilo
que nunca foi e o que nunca será
um intervalo entre a ilusão e o desejo
quando morrermos chegaremos finalmente
ao silêncio
a partir do qual serão as coisas que nos falam
em vez de nós
e prescindiremos do que não temos e do que não
teremos
pois essa é a sabedoria da morte
quando morrermos
daremos finalmente o que não temos:
a nossa morte
quando morrermos
apagar-se-ão os fios de luz da alma dos nossos amados
e eles dirão que ninguém é dono de si mesmo
e eles dirão que não somos Deus
e que até o mistério de Deus está revelado: Ele sabe
fazer-se amar
e condena-nos a amá-Lo − eis porque Deus existe
quando morrermos
diremos que é tempo de fazer a paz
e que já vagueámos bastante longe dos outros
e que devemos aproximar os irmãos
uns dos outros
e que essa é uma boa razão para
morrermos
ou seja para juntar a família
quando morrermos
escreveremos o nosso nome com serenidade
com toda a verdade que não fomos
capazes de reunir enquanto
vivos
porque morrer é a melhor forma de ser
sincero
quando morrermos
diremos que era preciso que assim fosse
porque já há barulho a mais
e já não queremos ser uma forma de ruído inútil
quando morrermos
talvez consigamos finalmente perceber o
mundo em que vivemos e para onde
nos conduz esta loucura
da vida sem amor
e do mal por apagar
quando morrermos
deixaremos de ser ofensivos para as outras
pessoas
pois já é tempo de nos libertarmos delas
e os solitários merecem mesmo a solidão
quando morrermos
a terra responderá ámen
e ninguém ouvirá essa voz
porque o som da morte tem limites
quando morrermos
estaremos condenados a carregar connosco
a nossa vida e a vida dos nossos pais
e a ser a cama onde se deitarão os nossos
filhos
quando morrermos
pensaremos que nos escapou algo
que houve lugares onde poderíamos ter estado
que algo acontece sem nós
quando morrermos
virá o desejo de saber
se poderíamos ter sido outra coisa
em vez do que fomos
ter sido antes de ser
quando morrermos
os nossos olhos verão finalmente as coisas
que não estão onde estão os lugares da vida
e verão coisas que lá não estão
quando morrermos
daremos outro nome ao exílio
quando morrermos
perceberemos então o aspecto do género
humano
perceberemos o que deseja o corpo
saberemos que cada homem é uma esfinge
quando morrermos
saberemos que a vida não era só ceder
no limite
ceder nas questões de vida e de morte
saberemos que a vida era ceder nas coisas
pequenas
muito antes da última palavra
quando morrermos
saberemos dar lugar aos filhos
com dignidade
saberemos que a paisagem se esgotou
e que os outros deverão vê-la
com os próprios olhos
quando morrermos
voltaremos ao ventre da mãe
donde quase nem saímos
pois a vida foi o tempo de olhar para
a nossa mãe do lado de fora
e regressar ao seu centro
para não esquecermos que não começámos do nada
quando morrermos
podemos então lavar duas vezes as mãos
na mesma água do rio
porque tudo é possível na morte
até sabermos a razão pela qual amamos alguém
quando morrermos
contaremos um segredo a Deus
sem grades que nos separem
e com olhos que vêem apenas o bem
quando morrermos
gritaremos muito alto
e esse grito não romperá o silêncio
a barreira que nos separa dos vivos
porque somos agora outra coisa
somos uma forma de bondade
e a bondade faz-nos continuar
a procurar os nossos mortos
eternamente.
Junho, 2005
(António Jacinto Pascoal)
in «Cello Concerto», 2006
Etiquetas: António Jacinto Pascoal (1967-), Rui Melo (1973) pintor açoreano (cortesia da galeria de arte Carmina, Terceira/Açores)
1 Comentários:
Não deixaremos morrer
os nossos mortos
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