phantasiestück
*
Mario Sironi «Landscape with tree», 1943
(oil on plywood)
*
*
phantasiestück
*
uma mulher sorri na pizzeria
numa espuma de luzes.
o sorriso resguarda-a
de um novelo de soslaios.
em louças e talheres retine a pura
alegria de seus dentes mozartianos.
o seu cabelo, desatado, lento,
é uma cascata do riso à camisola.
musa ou desmusa em seus acasos
está, estava ali ao rés dos meus exílios.
a medida de whisky foi virada no copo.
a gente conhecia-se desde o princípio do mundo.
a noite leva e traz húmidas terras,
cheiros de agosto, lúcidas escutas.
a noite traz também escuras mariposas,
palavras apagadas, canções tensas.
no fundo da alma uma flauta samba.
cúmplice coração que assim te quebras!
ternura e água, rosas repentinas,
vêm do jogo de azar para o nó na garganta.
era talvez a sua substância sonâmbula
ou o desejo grave de tocá-la, tocá-la atravessando
descompassado ocultas alamedas, terei nascido
em paisagem nenhuma, ou só vivi
de procurar as ítacas precárias, os
lugares do meu massacre? onde o valor, o engenho
e o saber humano se destroem: a paixão
é um conhecimento obcecado
e sem alternativa. eram talvez as ondas incessantes
dessa praia sem remédio, as ondas, ondas
da morte fulminante. eram talvez o seu bosque de histórias,
a sua árvore de esperança, a rua, as ruas
onde eu a levaria uma outra vez
pela noite deserta. há sempre alguém que fica
na esquina derradeira. era talvez
de lucidez e transe o seu caminho
entre saturno e vénus, deslembranças, jorros de água,
surdinas voluntárias. era talvez a sombra, o infortúnio
de haver um bar fechado quando eu
a levasse sabendo de antemão
que todo o filtro é a inútil liberdade
de se fingir bebê-lo para entrar
no metal do destino ou, quem sabe, uma voz tacteando
seus cárceres carnívoros ou, quem sabe, um naufrágio.
a que horas se nasce? a que horas se morre?
a que horas se diz que o mundo existe
de pensarmos que existe? de repente se vê
que tudo o mais é um súbito milénio
da medida das coisas que me ruminam por dentro,
da aprendizagem das coisas, quando
a rainha da noite vocifera, quando
as forças obscuras têm a coruscante
consciência da terra e do destino:
há um lado opressor e um lado oprimido
que têm de conhecer-se em vida e descaminho
e o tempo é curto no rio de janeiro.
mas há quatro horas de diferença
de fuso horário daqui aos grandes temas
dilacerantes de lisboa.
também se morrerá, mas é diferente,
como se a morte fosse um poço de ar
e o voo a atravessasse estremecendo.
mais forte nos ouvidos é a presença do mundo,
sventurata musica, e há nele entrecortados
canaviais de sono, orquídeas brancas
junto à janela, no momento exacto em que bravias
se tornaram, apenas recordadas,
e deslumbram, as flores criam espaços de permuta
com a realidade e a violência, as margens
de uma liberdade fulgurante.
entre tempo e figura e apertada angústia,
metamorfoses, transparências, luzes,
e as armadilhas do camões: o poema
é um beco sem saída, a certeza sumária
de ser também lugar do sofrimento, mas de breves
inteligências, reenvios, exílios.
não há mentira nem verdade, apenas os fragmentos
de arremedo e despedida,
fantásticos, fingidos, verdadeiros.
adeus, adeus, até ao som da fala.
uma mulher sorri para que a dispa
na aluada intimidade deste jogo
de espelhos, de erros meus, de má fortuna.
e nua será várias na reescrita.
(Vasco Graça Moura) *
numa espuma de luzes.
o sorriso resguarda-a
de um novelo de soslaios.
em louças e talheres retine a pura
alegria de seus dentes mozartianos.
o seu cabelo, desatado, lento,
é uma cascata do riso à camisola.
musa ou desmusa em seus acasos
está, estava ali ao rés dos meus exílios.
a medida de whisky foi virada no copo.
a gente conhecia-se desde o princípio do mundo.
a noite leva e traz húmidas terras,
cheiros de agosto, lúcidas escutas.
a noite traz também escuras mariposas,
palavras apagadas, canções tensas.
no fundo da alma uma flauta samba.
cúmplice coração que assim te quebras!
ternura e água, rosas repentinas,
vêm do jogo de azar para o nó na garganta.
era talvez a sua substância sonâmbula
ou o desejo grave de tocá-la, tocá-la atravessando
descompassado ocultas alamedas, terei nascido
em paisagem nenhuma, ou só vivi
de procurar as ítacas precárias, os
lugares do meu massacre? onde o valor, o engenho
e o saber humano se destroem: a paixão
é um conhecimento obcecado
e sem alternativa. eram talvez as ondas incessantes
dessa praia sem remédio, as ondas, ondas
da morte fulminante. eram talvez o seu bosque de histórias,
a sua árvore de esperança, a rua, as ruas
onde eu a levaria uma outra vez
pela noite deserta. há sempre alguém que fica
na esquina derradeira. era talvez
de lucidez e transe o seu caminho
entre saturno e vénus, deslembranças, jorros de água,
surdinas voluntárias. era talvez a sombra, o infortúnio
de haver um bar fechado quando eu
a levasse sabendo de antemão
que todo o filtro é a inútil liberdade
de se fingir bebê-lo para entrar
no metal do destino ou, quem sabe, uma voz tacteando
seus cárceres carnívoros ou, quem sabe, um naufrágio.
a que horas se nasce? a que horas se morre?
a que horas se diz que o mundo existe
de pensarmos que existe? de repente se vê
que tudo o mais é um súbito milénio
da medida das coisas que me ruminam por dentro,
da aprendizagem das coisas, quando
a rainha da noite vocifera, quando
as forças obscuras têm a coruscante
consciência da terra e do destino:
há um lado opressor e um lado oprimido
que têm de conhecer-se em vida e descaminho
e o tempo é curto no rio de janeiro.
mas há quatro horas de diferença
de fuso horário daqui aos grandes temas
dilacerantes de lisboa.
também se morrerá, mas é diferente,
como se a morte fosse um poço de ar
e o voo a atravessasse estremecendo.
mais forte nos ouvidos é a presença do mundo,
sventurata musica, e há nele entrecortados
canaviais de sono, orquídeas brancas
junto à janela, no momento exacto em que bravias
se tornaram, apenas recordadas,
e deslumbram, as flores criam espaços de permuta
com a realidade e a violência, as margens
de uma liberdade fulgurante.
entre tempo e figura e apertada angústia,
metamorfoses, transparências, luzes,
e as armadilhas do camões: o poema
é um beco sem saída, a certeza sumária
de ser também lugar do sofrimento, mas de breves
inteligências, reenvios, exílios.
não há mentira nem verdade, apenas os fragmentos
de arremedo e despedida,
fantásticos, fingidos, verdadeiros.
adeus, adeus, até ao som da fala.
uma mulher sorri para que a dispa
na aluada intimidade deste jogo
de espelhos, de erros meus, de má fortuna.
e nua será várias na reescrita.
(Vasco Graça Moura) *
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in «Os rostos comunicantes», 1984
in «Os rostos comunicantes», 1984
Etiquetas: Mario Sironi (1885-1961) pintor italiano, Vasco Graça Moura (1942) Porto
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