domingo, maio 11

Poluição


Evan Holloway «Book» 2004, sculpture
(metal, plaster and paint)
*
*
Poluição
*
A cidade não é o nosso orgulho os aviões não são pombas
*******************************************[brancas
estou * doente
na minha frente os automóveis brilham uma mulher volta
************************************para mim o rosto
tem os óculos no alto da cabeça como Gago Coutinho após
****************************************a * Travessia
e eu olho para o chão e depois para o céu:
entre o vómito matinal de um bêbedo e Deus
já quase nada existe

Deus está debaixo dos tectos enrolado em mansos cobertores
não há saída nenhuma para ele pois
que se deixe estar: este caminho esta cidade são
de facto trabalho para o Homem

Deus limitou-se a apostar no Homem

Dois generais nunca discutem por causa de uma rosa
ensinou-me meu pai * há muito tempo
quando podava a vinha e eu ia enchendo
os bolsos com tangerinas para dar ao Careca
que escolhia sempre a linha quando íamos descalços
jogar * o * futebol

A cidade a esta hora está a ruir por dentro
mas está tudo bem é óptimo isto tudo
eu sigo embatucado pela margem do Tejo
sou eu agora quem aposta nas gaivotas contra a nafta
vejo passar um petroleiro grego − o Parthénon − será?
por ali fico duas ou três horas a olhar as águas
o Tejo é hoje uma maldita avenida e há cada vez menos árvores
o Tejo * é *um * esgoto
o Tejo * é *um * esgoto
oh * por favor * salvemos
ao menos
as gaivotas

Nas livrarias vendem-se pastéis de nata e Roland Barthes
é moda não se admirem: duzentos mil exemplares
de pastéis de nata
contra quinhentos livros do António Ramos Rosa
e as pessoas entram e escolhem
invariavelmente
os pastéis * de * nata e
lambem-se gulosas satisfazem
a sua opção crítica cumprimentam e engordam o livreiro
generosamente


Hoje* ainda* * Obélix* e* Kafka

Hoje* ainda** Hamburgers* e* Travolta

Hoje* ainda* * Chiclets

Hoje ainda há
Hoje

Volto de novo ao Tejo às suas margens descalço como
************************************************Leanor
os meus sapatos ainda lá estão só a verdura não existe
e agora mais confortável do que nunca com estes sapatos
************************************************** sujos
cheios da nossa civilização até aos atilhos
caminho devagar para o ventre da cidade fumando um cigarro
********************************************** sem filtro
e pontapeio com um misto de impotência e de desprezo
os caixotes de lixo
os pneus dos automóveis estacionados
sabendo que vou morrer
inevitavelmente

Ó* mar* da* minha* angústia* diz-me: *a *felicidade *é *uma *árvore?

(Joaquim Pessoa)

in «Os Dias da Serpente», 125 Poemas (Antologia Poética), 1989

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