sexta-feira, setembro 21

PARA O LEITOR LER DE/VAGAR


Mark Rothko «Untitled», 1941-42
(oil and graphite on linen)
- National Gallery of Art, Washington -

*
PARA O LEITOR LER DE/VAGAR

Volto minha existência derredor para. O leitor. As mãos
espalmadas. As costas
das. Mãos. Leitor: eu sou lento.
Esta candeia que rodo amarela por fora,
e ardentescura por dentro.
Candeia tão baixa-viva. Sou lento numa luminos-
idade como em meio de ilusão.
Volto o que é um rosto ou um
esquecimento. Uma vida distribuída
por solidão.
*
**********Sou fechado
como uma pedra pedríssima. Perdidíssima
da boca transacta. Fechado
como uma. Pedra sem orelhas. Pedra una
reduzida a. Pedra.
Pedra sem válvulas. Com a cor reduzida
a. Um dia de louvor. Proferida lenta.
Escutada lenta.
*
― Todo o leitor é de safira, é
de. Turquesa.
E a vida executada. Devagar.
Torna-se a infiltrada cor da. Pedra
do leitor.
Volto para essa pedra absoluta. Relativa
à minha pedra.
Minha pedra pensada com a forma
de. Uma lenta vida elementar.
*
Leitor acentuado, redobrado leitor moroso.
Que entende o relato sem poros,
o mês arroz dealbado sobre a pedra
sem orelhas, pedra sem boca. E que desce os dedos
sobre. Meus dedos pelo ar. E toca e passa.
Pelas pálpebras paradas. Pelos
cerrados lábios até às raízes.
E cai com seus dedos em meus dedos.
E espera devagar.
Leitor que espera uma flor atravancada,
balouçando baixa
sobre. Mergulhados
filamentos no terror
devagar.
*
Mas que espera. Doce. Contra o hermético
movimento do mundo.
E que o mundo movimenta contra.
As de Deus auxiliado
auxiliar. E que Deus movimenta contra. Suas ondas
muito lentas, amargas ondas muito.
Antigas, ignoradas, corridas. Sobre
a primeira face do poema. Leitor
que saberá o que sabe dentro. Do que sabe
de mais selado. E esperará
dias e anos dobrado, leitor. Varrido
pelo movimento dos dias.
Contra o movimento nocturno do. Poema devagar.
*
E que espera.
E para quem volto. Muitas coisas sobre
Uma coisa. Volto
uma exaltante morte de Deus. Auxiliado
auxiliar. O espírito, a pedra.
Do poema.
Leitor à minha frente. Vindo
do mais difícil lado
das noites. Ainda tocado e molhado
de suas flores aniquiladas.
Rodo. Para esse rosto difuso e vagaroso
Meu sono.
A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação.
A solidão. Trémula devagar.
*
Leitor: volto
para ti. Um livro que vai morrer depressa.
Depressa antes. Que a onda venha, a onda
alague: A noite caída em cima de teus dedos.
De encontro à cor de encontro à. Paragem
da cor. Este livro apertado nas estrelas
da boca, estrelas.
Aderentes fechadas. Por fora
leves às vezes, presas.
Para eu batê-las durante o tempo.
Eterno, o tempo. De uma onda maior que o nosso
tempo. O tempo leitor de um. Autor.
Ou um livro e um Deus com ondas de um mar
mais pacientes. ―
***************Ondas do que um leitor devagar.

(Herberto Hélder) *

in «Lugar», 1962

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