segunda-feira, julho 30

PAÍS POSSÍVEL


Georg Baselitz «A Mão de Deus», 1964-65
(óleo sobre tela)
- Private Collection -
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DIÁLOGO COM A FIGURA DO PROFETA JEREMIAS,
PINTADA POR MIGUEL ÂNGELO NO TECTO
DA CAPELA SISTINA


Pensa tens que pensar bastante jeremias
sobre ti pesa o peso de pensar por nós que não pensamos
por nós que temos horas para tudo o que pensar não seja
que temos o emprego as lojas os cinemas o relógio
que com suor pagamos pelo tempo todo nosso
o preço duma vida inteiramente submetida
às botas dos senhores deste mundo
pensa tu jeremias que talvez resolvas tu
problemas até hoje pouco menos que insolúveis
redutíveis talvez a pequenas palavras como pão
ou casa ou roupa simples condição pra conseguir
que o homem possa estar sobreviver
sobre esta terra sólida passível no entanto
de submissão ao sedutor encanto
de fantasmas talvez manipulados longos séculos
Depois procura que não mais o homem
que pouco tempo vive neste único mundo
veja fugir o poder de pensar
pois mais que privilégio é um fardo pensar
Que ao homem se consinta defender a sua vida
de quem mais que matá-lo claramente e duma vez
a vida lhe retira ambiguamente
Que possa ver a pedra a terra a estrela
o animal a arvore a sucessão das estações
o dia a noite o pôr do sol
Que viva muito mais por saber ler
por poder descobrir noutras pegadas anteriores às suas
passado para os passos que lhe cabe dar
na terra e no momento em que tem de viver
Pensa tu Jeremias e não pense o homem
pois pensar faz sofrer e sofrer muito mais
quem pensa pouco menos que por profissão
Eu sei que pensas Jeremias eu vejo essa mão
na exacta posição em que a coloca aquele que pensa
sob o peso que pesa o facto de pensar
e de levar tamanho peso na cabeça
Pensa sem transcendência pensa apenas
deita contas à vida lembra a noite
que desce sobre nós veladamente
Pensa e diz-me depois as conclusões
a que decerto os anos e os séculos
te haverão permitido ter chegado
Aliás sei que pensas jeremias
e que pensas melhor que o pensador
por rodin posto a pensar oficialmente
Vê-se que pensas vê-se não apenas pela cara
mas até pela cor que miguel ângelo
te deu a essas vestes que te fez vestir
deve haver coisa de uns cinco séculos
Pensa pensa serenamente Jeremias
que nem mesmo o rebanho do turista americano
que ruidoso passa uns vinte metros mais abaixo
poderá perturbar essa serenidade
que pões na circunstância de pensar
Pensa que pelo menos eu sei que tu pensas
E o soube ao descobrir-te aí no tecto
esse céu só possível em virtude da imaginação
de um artista humano pela condição
invejável de ser e de cingir-se a esta terra
Vi-te pensar e paro e penso
e aqui sozinho em meio desta gente
definitivamente sei que sempre pensarei
que por muito que pense nunca houve ou haverá alguém
que pense tanto e que pense tão bem

(Ruy Belo)
*

in «País Possível», 1973

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