terça-feira, dezembro 16

O INQUILINO


Edvard Munch «Szene aus Ibsens (Ghosts), 1906
(oil on canvas)
- Private Collection -


O INQUILINO

****Ainda me lembro dessa noite. Fevereiro de mil novecentos e cinquenta e quatro. Sentado à mesa de trabalho, sem fazer um gesto, recortado na luz intensa do candeeiro que o apanhava de perfil, o inquilino ia perguntando aos espectadores imaginários como se o tolhesse a lentidão dum sonho ou o tapete no fio se pusesse de repente a falar:

________________Aceito a ordem
________________das coisas, a geometria
________________imposta do quarto?
________________Os objectos no
________________seu lugar de sempre,
________________a distância exacta
________________da cadeira à mesa,
________________do meiple à janela?
________________O sono do tapete?
________________O universo diário
________________do quarto alugado,
________________as molduras que
________________cercam, resguardam
________________naturezas mortas,
________________paisagens imóveis?
________________Aceito a minha vida?
________________Ou mexo no candeeiro,
________________desvio-o alguns centímetros
________________na mesa, altero
________________as relações das coisas,
________________afinal tão frágeis
________________que o simples desvio
________________dum objecto pode
________________romper o equilíbrio?
________________Pego no telefone
________________e grito ao primeiro
________________desconhecido: ouves-me?
________________Ou deixo tudo
________________tal como está,
________________medido, quieto
________________no rigor do quarto,
________________e eu hesitante
________________entre o soalho e o tecto?
________________Desloco o cinzeiro
________________sabendo que posso
________________matar mandarins,
________________provocar cataclismos,
________________fracturas, amores,
________________eclipses, sonhos,
________________com a ponta dum dedo?
________________Ou apago a lâmpada
________________eléctrica e entro
________________no mesmo torpor
________________que as flores do tapete,
________________a fruta dos quadros,
________________o frio, o bolor,
________________no chão, nas paredes,
________________o poema na mesa,
________________a mesa no espaço
________________do quarto comprado
________________mês a mês? Confundo
________________o aluguer e o tempo,
________________deixo-me ser
________________em cada milímetro,
________________em cada segundo,
________________do quarto, da vida,
________________o outro objecto
________________chamado inquilino?
________________Ou desencadeio
________________a insurreição
________________mudando de sítio
________________o meiple, a cadeira,
________________mudando-me a mim?

________________(Carlos de Oliveira) *
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______________________1966
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Nota: Esta tela de Edvard Munch integra a exposição «Interior/Exterior», a decorrer no Kunstmuseum em Wolfsburg, na Alemanha, cujo tema está relacionado com a pintura de interior desde o período romântico até ao design de interiores do futuro.
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