sábado, março 29

Amarelo quebrado


John Stezaker «Third Person II» 1988-1990, collage

*
Amarelo quebrado
*

As casas ganham um ar mais mortal
na tristeza depois de não ter havido coito.
Vão depressa as nuvens, tão depressa,
levam pombos e telhados agudos com ardósia quebram
em radiações de treva na água aprisionada.
*
Já tínhamos falado de tudo na véspera,

do adiamento, da sufocação,
mas senti que não seria assim.
Com a garganta ao contrário da Holanda,
seca, incapaz de falar.
*
Vi os gráficos do sangue empresarial.

Na floração das vendas, o risco suspendia
câmbios de gasolina sobre mim.
Ao som do telefax, um visor de números
era agora o teu rosto.
*
Por cima do casaco hesitavam as mãos

de novo perdidas no medo de prender-se
ao metal tecido de milagre da saliva.
Eram mãos que não sabiam pousar.
*
A experiência agora é esta: chamar desamor

à emoção que não entende o que deseja,
confunde os sentimentos numa aridez tão pesada
que nem eu percebo como deixa voar um avião
por este sem fim de céu que traz o fim.
*
Mas foi horas antes que findou.

Ia a noite avançando, escurecia o hotel
e as mãos ficaram presas. Tanto tempo,
tanto tempo nenhum.

(Joaquim Manuel Magalhães)


in «As Escadas não têm Degraus», Livros Cotovia, 1990


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