ANATOMIA
Miquel Barceló «Verdades y Aspirinas», 1984, oleo sobre tela
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ANATOMIA
Como todos sabemos demasiado bem,
às vezes o que importa não é a literatura
e em qualquer encontro de escritores
podemos aprender alguma coisa
de anatomia humana
pelo menos da parte em que se estuda
a forma e o tamanho dos umbigos:
Maiores ou mais pequenos, feios ou mais belos,
situam-se no centro do universo
- pequenos planetas que de súbito
se transformam em estrelas
e mostram uma tendência irresistível
para absorver o espaço à sua volta.
De formato redondo, podem ser
ligeiramente elípticos
e ostentam em casos muito raros
quase uma curvatura parabólica
que em certas ocasiões os abre ao mundo.
Uma investigação mais aturada
a essas crateras tão humanas
descobre que se ocultam no seu côncavo
cidades invisíveis, rostos de outro tempo,
segredos de futuros que não houve,
invejas e desejos e remorsos
que ninguém saberia confessar
e sobretudo o medo,
a solidão mais fria e esse orgulho
que serve de disfarce ao desespero.
Sempre que se lhes toca, é necessário
fazer as coisas com sentido clínico
e alguma subtileza: alguns retraem-se
até desaparecerem, refugiados
num pudor infantil, fora de moda,
mas com o tempo quase todos
aprendem a viciar-se nesse gesto
e crescem devagar, sob a pressão dos dedos,
com um prazer quase erótico,
numa erecção intensa, até chegarem
a ocupar então o corpo todo
e a devorar-lhe a alma.
Muitos desses umbigos, finalmente,
reflectem a luz em certas circunstâncias:
os mais clássicos preferem
a superfície líquida de um lago;
outros só se contentam com o mar;
mas para a grande maioria basta
um luminoso par de olhos humanos
disposto a conceder-lhes a pequena graça
de alguns minutos de atenção.
(Fernando Pinto do Amaral)
in «A Luz da Madrugada», Dom Quixote, 2007
Etiquetas: Fernando Pinto do Amaral (1960-) Lisboa, Miquel Barceló (1957) pintor espanhol
2 Comentários:
a fernanda tem um bom gosto enorme para descobrir poetas:)
de-nos o seu contributo.
é so mandar um mail para o endereço q esta na pagina do Blogue das artes;)
Belo espaço onde a beleza poetica impera com tela__________
Beijo doce
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