sábado, janeiro 19

Canto a raiz do tempo na raiz do espaço


Gil Heitor Cortesão «Sem Título», 2002
( óleo sob acrílico)
- Colecção Particular -

*
Canto a raiz do tempo na raiz do espaço.
A minha hora é esta hora
o meu instante é este instante.
Tenho um relógio em cada gesto
em todos os meus poros bate a meia-noite.
A eternidade é muito perto ou muito longe
mas já não passa por aqui.
A minha data é esta data.
Hoje
sou teu contemporâneo
Tempo.

Porque nem sempre tive a tua idade.
Eu já fui rei de cada instante e já cantei
na tua imensa imensa eternidade.

Mas como os violinos morrem por dentro da música
assim se vão queimando os dedos em seu puro arder.
E o vinho não regressa à taça onde foi festa
e o beijo não regressa à boca onde foi vinho.

Se eu pudesse voltar um instante que fosse
e se de novo me esperasses à varanda
de um domingo qualquer e eu pudesse dizer-te:
As rosas passarão tu ficarás
e há-de chegar o mês de Maio e há-de chegar Dezembro
e tu estarás ainda à minha espera e tu serás
em pleno Inverno ainda a primavera.
Nós temos de passar. Porém não chores:
a eternidade aprende-se passando.
Se eu nunca te perdesse amor tu morrerias
ter de perder-te é nunca te perder.
E as rosas passarão e tu serás
sentada na varanda A que me espera
bordando sobre o Tempo quem eu sou:
este que passa.

Se de repente se abrissem os batentes da noite
e eu pudesse voltar
se de repente *** Tempo *** me levasses
de novo ao tempo da inocência
eu gravaria em cada instante a data deste tempo
eu escreveria sobre a eternidade
a dolorosa brevidade deste instante.
Ah se de novo me levasses ao país da brisa

*******Rio Águeda que vais
*******Banhando a verde fragrância
*******Das margens do Nunca Mais
*******Onde fica a minha infância


eu escreveria sobre as águas um só verso póstumo:
aquele que passasse nas águas que passam
e passando deixasse
nas margens do futuro um sinal deste tempo
− areia que me escorre pelos dedos breves.

Mas hoje eu quero ser o teu contemporâneo
quero acertar na História o calendário
quero escrever na página das mãos
a data exacta em que saúdo
o teu puro passar.
Hoje eu quero ser o teu guerreiro
Tempo
quero bater com teus martelos nas colunas
dos templos onde os deuses já morreram
hoje
quero que cada homem seja teu contemporâneo
quero acertar no meu país o teu relógio
Tempo.
Porque me dói passar enquanto não passares
mover-me dói-me estando tu parado
e dói-me transformar se tu não transformares
e dói-me ser presente sendo tu passado.

Ah que de novo os teus ponteiros no meu sangue apontem
aquele instante que por ser eterno foge.
Eu que já fui outrora o teu contemporâneo de hoje
não suporto ser hoje o teu contemporâneo de ontem.

Onde tu no presente és cheio de passado
eu quero ser futuro. Quero transformar.
Onde tu no presente és já futuro começado
quero viver a tua lei: quero passar.

Seja o meu canto este momento e só este momento
e sendo este momento tenha aquela idade
em que já sombra ou mera folha ao vento
eu me perca na tua imensa imensa eternidade.

Que póstumo não sei viver não sei cantar.
E ser presente é ser passado e ser futuro apenas hoje.
O mais é só areia que nos foge
por entre as breves mãos. Ser presente é passar.

E porque não há um tempo universal
porque há um tempo próprio em cada corpo do universo
eu quero ser presente em Portugal
cantando o teu devir em cada verso.

Se em Portugal o teu passar é subterrâneo
(e o mais é só esperar desesperar)
eu quero ser o teu contemporâneo
em Portugal. Com tuas armas *** Tempo *** transformar.

E assim passar.

(Manuel Alegre) *

in «O Canto e as Armas», 1967

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