für elise
*
Julião Sarmento «Inadequate Readings», 2003
(mixed media on canvas )
*
für elise
«você não sabe quem é mick jagger?» disse elisa
byington travando o carro a fundo de tal
modo que estive a ponto de aprender
por choque pedagógico quem era o dito
no pára-brisas. o mundo
das onze da noite em Copacabana
ia desabando sobre mim, arranha-céus e tudo,
morros inclusive. eu não sabia
do papel que para a elisa, digo, para a história
da civilização tinha tido o mick.
«por onde que você andou?» fiquei enver-
gonhadíssimo, porque era confessável, e acendi
um cigarro embaçado para atenuar a severidade
dela, assim fulminante a partir
do branco dos olhos, e nem disse
mais do que umas quantas
banalidades, quando estava na idade de saber
quem era o tal, andei por outros lados
e não me tinha
arrependido, etc; céus!, se vissem
como ela mais tarde relatou o caso
a olívia e francis hime sem metáforas compassivas
que até no teatro anatómico, segundo creio, se usam
ante a humana miséria e a nudez desalienada.
só me resta viver a melancolia do conflito
de gerações, sentir-me um marginal
no ocidente, entre o machado
de bronze e a roda de fiar, dono da ignorância ou
trabalhador de rotinas tão diversas, revisitar lembranças
das várias mulheres amadas e culpá-las,
entre o tanto que falámos de piero
della francesca e do parmigianino,
por, nas febris intensidades, não me terem elas, as jovens desrimadoras
de tanta coisa, imposto o mick jagger;
só me restam pudores de incompletos
anos de aprendizagem e a procura de neutras expressões, quando
a dada altura me dei conta
de que detestava o surrealismo e me empenhava
na própria ordem do fazer das coisas
em ordem, mesmo das lancinantes, entre
a tentação e a cedência, a facilidade e o impossível,
entre a escuta e a música, até entre
a pose e a retratada alongando-se
no espelho convexo; e restam-me a caneta vigiada,
algumas antologias (a grega, sobretudo) e algumas
artes da fuga, as obras teóricas para o
deslumbramento, para o desmembramento,
e algumas ironias, algumas ironias.
é pouco como mundo, limita as experiências, as interrogações
da alteridade. onde é que eu estava ou estive? Por onde
terei andado, único snob da galáxia ou, até, bêbado,
fingindo o inessencial?
o que eu não sei, o que eu não vou saber
nunca… isto é patético.
o fiat da elisa ainda vai, hélas!,
dar muita travadela. e eu hei-de
correr as ruas baixando a voz enrouquecida,
sem anestesias, esquecido o número harmónico,
murmurando um velho fado futurista:
***«a minha alma é uma tralha/velha da feira da ladra/
*** dá pra mobilar o sótão e até calha/ bem para fechar a quadra»,
hei-de caminhar a pé, como uma dissonância excessiva, nos ventos
do acaso, modulando-me destemperadamente
neste ou naquele bar, nesta ou naquela praia,
nesta ou naquela poluição, vergonha, via fácil
de não ter sabido a tempo quem era o mick, de ter perdido a juventude.
agora, que é lisboa, que a elisa está
do outro lado do mar, talvez em angra
dos reis a passar o fim-de-semana, como na
telenovela aqueles dois, assim desnorteado, a ver o sol
de cada dia morrer aqui para nascer lá,
do outro lado da água, isto é, ao contrário, e ainda por cima mais cedo,
ocorre-me a vexatória questão que já li algures:
o que é que eu hei-de fazer, ó álvaro?
(Vasco Graça Moura) *
«você não sabe quem é mick jagger?» disse elisa
byington travando o carro a fundo de tal
modo que estive a ponto de aprender
por choque pedagógico quem era o dito
no pára-brisas. o mundo
das onze da noite em Copacabana
ia desabando sobre mim, arranha-céus e tudo,
morros inclusive. eu não sabia
do papel que para a elisa, digo, para a história
da civilização tinha tido o mick.
«por onde que você andou?» fiquei enver-
gonhadíssimo, porque era confessável, e acendi
um cigarro embaçado para atenuar a severidade
dela, assim fulminante a partir
do branco dos olhos, e nem disse
mais do que umas quantas
banalidades, quando estava na idade de saber
quem era o tal, andei por outros lados
e não me tinha
arrependido, etc; céus!, se vissem
como ela mais tarde relatou o caso
a olívia e francis hime sem metáforas compassivas
que até no teatro anatómico, segundo creio, se usam
ante a humana miséria e a nudez desalienada.
só me resta viver a melancolia do conflito
de gerações, sentir-me um marginal
no ocidente, entre o machado
de bronze e a roda de fiar, dono da ignorância ou
trabalhador de rotinas tão diversas, revisitar lembranças
das várias mulheres amadas e culpá-las,
entre o tanto que falámos de piero
della francesca e do parmigianino,
por, nas febris intensidades, não me terem elas, as jovens desrimadoras
de tanta coisa, imposto o mick jagger;
só me restam pudores de incompletos
anos de aprendizagem e a procura de neutras expressões, quando
a dada altura me dei conta
de que detestava o surrealismo e me empenhava
na própria ordem do fazer das coisas
em ordem, mesmo das lancinantes, entre
a tentação e a cedência, a facilidade e o impossível,
entre a escuta e a música, até entre
a pose e a retratada alongando-se
no espelho convexo; e restam-me a caneta vigiada,
algumas antologias (a grega, sobretudo) e algumas
artes da fuga, as obras teóricas para o
deslumbramento, para o desmembramento,
e algumas ironias, algumas ironias.
é pouco como mundo, limita as experiências, as interrogações
da alteridade. onde é que eu estava ou estive? Por onde
terei andado, único snob da galáxia ou, até, bêbado,
fingindo o inessencial?
o que eu não sei, o que eu não vou saber
nunca… isto é patético.
o fiat da elisa ainda vai, hélas!,
dar muita travadela. e eu hei-de
correr as ruas baixando a voz enrouquecida,
sem anestesias, esquecido o número harmónico,
murmurando um velho fado futurista:
***«a minha alma é uma tralha/velha da feira da ladra/
*** dá pra mobilar o sótão e até calha/ bem para fechar a quadra»,
hei-de caminhar a pé, como uma dissonância excessiva, nos ventos
do acaso, modulando-me destemperadamente
neste ou naquele bar, nesta ou naquela praia,
nesta ou naquela poluição, vergonha, via fácil
de não ter sabido a tempo quem era o mick, de ter perdido a juventude.
agora, que é lisboa, que a elisa está
do outro lado do mar, talvez em angra
dos reis a passar o fim-de-semana, como na
telenovela aqueles dois, assim desnorteado, a ver o sol
de cada dia morrer aqui para nascer lá,
do outro lado da água, isto é, ao contrário, e ainda por cima mais cedo,
ocorre-me a vexatória questão que já li algures:
o que é que eu hei-de fazer, ó álvaro?
(Vasco Graça Moura) *
in «A sombra das figuras», 1975
Etiquetas: Julião Sarmento (1948-) artista plástico português, Vasco Graça Moura (1942) Porto
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