quarta-feira, dezembro 5

für elise

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Julião Sarmento «Inadequate Readings», 2003
(mixed media on canvas )

*
für elise

«você não sabe quem é mick jagger?» disse elisa
byington travando o carro a fundo de tal
modo que estive a ponto de aprender
por choque pedagógico quem era o dito

no pára-brisas. o mundo
das onze da noite em Copacabana
ia desabando sobre mim, arranha-céus e tudo,
morros inclusive. eu não sabia

do papel que para a elisa, digo, para a história
da civilização tinha tido o mick.
«por onde que você andou?» fiquei enver-
gonhadíssimo, porque era confessável, e acendi

um cigarro embaçado para atenuar a severidade
dela, assim fulminante a partir
do branco dos olhos, e nem disse
mais do que umas quantas

banalidades, quando estava na idade de saber
quem era o tal, andei por outros lados
e não me tinha
arrependido, etc; céus!, se vissem

como ela mais tarde relatou o caso
a olívia e francis hime sem metáforas compassivas
que até no teatro anatómico, segundo creio, se usam
ante a humana miséria e a nudez desalienada.

só me resta viver a melancolia do conflito
de gerações, sentir-me um marginal
no ocidente, entre o machado
de bronze e a roda de fiar, dono da ignorância ou

trabalhador de rotinas tão diversas, revisitar lembranças
das várias mulheres amadas e culpá-las,
entre o tanto que falámos de piero
della francesca e do parmigianino,

por, nas febris intensidades, não me terem elas, as jovens desrimadoras
de tanta coisa, imposto o mick jagger;
só me restam pudores de incompletos
anos de aprendizagem e a procura de neutras expressões, quando

a dada altura me dei conta
de que detestava o surrealismo e me empenhava
na própria ordem do fazer das coisas
em ordem, mesmo das lancinantes, entre

a tentação e a cedência, a facilidade e o impossível,
entre a escuta e a música, até entre
a pose e a retratada alongando-se
no espelho convexo; e restam-me a caneta vigiada,

algumas antologias (a grega, sobretudo) e algumas
artes da fuga, as obras teóricas para o
deslumbramento, para o desmembramento,
e algumas ironias, algumas ironias.

é pouco como mundo, limita as experiências, as interrogações
da alteridade. onde é que eu estava ou estive? Por onde
terei andado, único snob da galáxia ou, até, bêbado,
fingindo o inessencial?

o que eu não sei, o que eu não vou saber
nunca… isto é patético.
o fiat da elisa ainda vai, hélas!,
dar muita travadela. e eu hei-de

correr as ruas baixando a voz enrouquecida,
sem anestesias, esquecido o número harmónico,
murmurando um velho fado futurista:
***«a minha alma é uma tralha/velha da feira da ladra/
*** dá pra mobilar o sótão e até calha/ bem para fechar a quadra»,
hei-de caminhar a pé, como uma dissonância excessiva, nos ventos

do acaso, modulando-me destemperadamente
neste ou naquele bar, nesta ou naquela praia,
nesta ou naquela poluição, vergonha, via fácil
de não ter sabido a tempo quem era o mick, de ter perdido a juventude.

agora, que é lisboa, que a elisa está
do outro lado do mar, talvez em angra
dos reis a passar o fim-de-semana, como na
telenovela aqueles dois, assim desnorteado, a ver o sol

de cada dia morrer aqui para nascer lá,
do outro lado da água, isto é, ao contrário, e ainda por cima mais cedo,
ocorre-me a vexatória questão que já li algures:
o que é que eu hei-de fazer, ó álvaro?

(Vasco Graça Moura) *

in «A sombra das figuras»,
1975

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