sábado, julho 14

AUSÊNCIA


Artur Bual «Cristo e a Transcendência», acrílico sobre tela


AUSÊNCIA

Um a um, vão-se-me os dias,
Dia a dia, eu vou com eles…
Olhos extintos, mãos frias,
Perpasso ao longo dos dias
Como sombra que repeles…

E porquê? Porque me deixas
Nesta frieza, em que forças
Nem tenho para erguer queixas
Cujo alívio me nem deixas,
Ou contra mim já não torças…?

Não me vês Tu sofrer tanto
Quanto gostas de me ver?
Ou não sei eu, por enquanto,
Valer-me de sofrer tanto
Para chegar a vencer?

No entanto, vão-se-me as horas
Num sofrer tudo o que passa,
Só porque Tu Te demoras
A atirar às minhas horas
Uns restos da Tua graça…

Levanto os olhos lá cima,
Sondo esse abismo estrelado,
Baixo-os ao chão…, e o que anima
Esse abismo lá de cima
Anima a colina e o prado:

Ao Teu simples ígneo sopro,
Abrem-se os astros, as flores,
E as cavernas como a escopro…
Encapelam-se, ao Teu sopro,
Vento e mar com seus furores…

Só a mim me não aqueces
Com as bênçãos do Teu bafo!
Só dum ser vivo Te esqueces,
E este ar, que já não aqueces,
Me não é ar, e eu abafo…

Fosse eu pedra bruta! Fosse
Uma pouca de água! Um bicho
Sem razão, feroz ou doce,
Que virias!, nem que eu fosse
Qualquer montinho de lixo…

Fosse eu terra…, e dera flor!
Fosse eu ar, mar… gozaria
No sol Teu próprio calor!
Que o céu dá sóis e o chão flor
Porque o Teu amor lhos cria…

Mas sou este ser humano
A quem deste alma, razão,
Coração, vontade… e o engano
De sonhar ser mais que humano,
Contra a humanal condição!

E é por ser mais, que me deixas
Na solidão em que estou?
Por ser Teu filho, me fechas
Assim só comigo, e deixas
Entregue ao não-ser que sou?

Não posso! Que farei au,
Tua obra-prima falhada,
Que acusa quem na escreveu
De lhe dar o que lhe deu
E a deixar não terminada?

Desde que Te amo, não sei
Com nada mais contentar-me!
Onde estarei? onde irei?
Desde que Te amo que sei
Que é tudo o mais vão alarme…

Corra que não corra o mundo,
Só sobre mim próprio giro
Se mais encontrar, ao fundo
Dos mil caminhos do mundo,
Que um eu contra quem me firo…

Qualquer jornada que faça,
Qualquer empresa que tente,
Se me falha a Tua graça,
Faça o que faça ou não faça,
Que faço que me contente?

Amar-me, já o não consigo;
Fugir-me a mim, não no alcanço;
Não suporto estar comigo!
Se consigo ou não consigo,
Da mesma maneira canso…

Toda a largueza do mundo
Não me cura a falta de ar!
Sufoco!, neste profundo
Buraco negro do mundo
Que só Tu vens alargar…

E Tu não vens! E há que dias,
Há que séculos, Te espero,
De olhos extintos, mãos frias,
Sem nada que me encha os dias
Senão frio e desespero!

Fervem-me no peito as queixas,
As blasfémias, o clamor
Do abandono em que me deixas…
Mas gritos, blasfémias, queixas
Bem sabes que é tudo amor!

Bem sabes como é verdade
Que nada Te substitui,
Ou Te empana a claridade,
Em quem, por ver a Verdade,
Já tudo em volta lhe rui…

Ai, que os irmãos me não creiam,
É de crer! pois lhes advém
Que soletrem mas não leiam,
E só creiam, ou não creiam,
Consoante lhes convém.

Mas Tu, que me vês por dentro
Como eles vêem por fora,
Tu, em cujo amor eu entro
Nu até alma, por dentro
Dum banho lustral de aurora,

Tu, ─ não! não podes deixar-me
Sem Ti, nem nada no mundo!
Para quê todo este alarme?
Mas como é que ousas deixar-me
Sequer um breve segundo?

Pois não vês que já pertences
Ao amor com que me enleias?
Não me enleies, ou não penses
Que eu, sim, mas Tu não pertences
Às nossas comuns cadeias!

Livra-me de Ti de vez,
Se Te não queres cativo
Do meu amor! Ou não vês
Que isto é nem morrer de vez
Nem, também, sentir-me vivo?

Em Ti, por Ti amo tudo!
Se Te vais e em vão Te chamo,
Fico cego, surdo, mudo…
Faltas-me e falta-me tudo,
Que afinal só a Ti amo!

Pois bem, deitar-me-ei por terra,
Nu no chão nu, sem conforto
Senão o cinto que enterra
Seus férreos dentes na terra
De minha carne e meu corpo,

Deitar-me-ei dias e noites,
Não provarei água ou pão,
Fustigar-me-ei com açoites,
Encherei dias e noites
Gritando a Tua traição,

Até que venhas! Até
Que, de novo, a Tua graça
Me dê calor, luz, ar, fé,
Me ressuscite! ou até
Tudo que sou se desfaça

(José Régio) *

in «Mas Deus é Grande», 1945

Etiquetas: ,

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

belissimo poema.

15 de julho de 2007 às 11:41  
Blogger dapoetica disse...

Obrigada pelo seu comentário e parabéns pelos seus blogues dedicados à poesia e à cultura literária portuguesa.
Estarei atenta...

18 de julho de 2007 às 01:37  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial