sábado, janeiro 26

da vida humana


Pedro Cabrita Reis «The Large Self-Portraits 23», 2005
(acrylic on paper)
*
*
da vida humana

1

dizem que vais nascer, que há métodos de
determinar-te o sexo, que a tua mãe deseja
respirar o teu sopro, tua mobilidade,
teu mamar; tirar o teu retrato.

para quê prever-te o nome ou preparar
roupas rendadas? ninguém há-de cumprir-te
que te cumpras. e tentarão salvar-te a alma
com água e óleo e sal.

virás a amar alguém? a adoecer
apesar das vacinas? a sentar-te
nas margens do real a contemplá-lo
tristemente? jogarás à bola, ao pião,

mais tarde ao sete e meio?
para quê ser loquaz do teu futuro?

2

balbuciaste, falas, tens a sorte
de não ser mongolóide; trazes
da escola alguns cadernos, não aprendes
senão as ironias de aprender.

vês a mãe tricotando, gastas calças,
sapatos, camisolas. queres
o que tem o filho do vizinho, só o que ele tem;
atiras pedras, ficas a olhar os pássaros.

e à noite tens medo: as paredes
do teu quarto transformam-se em dragões
e a ramagem das árvores na janela
no assalto esperado: vais morrer.

e afinal não morreste e de manhã
tens de engolir o pequeno-almoço à pressa.
*
3

tu julgas que amas, leste
stendhal e sofres de ansiedade;
nem sequer tens dinheiro da mesada
que te sobre pra convidar alguém.

tu julgas que amas, tentas escrever
lugares-comuns. é então isso
a música de amar na adolescência?

cala-te. cala-te. a vida não é isto
nem aquilo. e há flores perversas
que a respiram. não percebes.

se te julgas amado, não te inventas
de novo, nem de velho, ficas
patetamente agridoce. trabalhas
muito menos, fumas muito.

4

para quê dar-te o sopro, o útil
sopro de respirares?
o espelho da homenagem, a
compostura da pose?

para quê escrever o exagero
do que és? inventar-te,
num jardim das delícias, as torturas
que simulas? terás alma?

amaste alguém? sofreste?
para que hás-de cumprir-te ou ouvir música,
afivelar a máscara, a diferença
de seus lugares-comuns?

nenhuma loquaz
invenção te suscita.
*
5

nem sentes já que te sacramentaram
de olhos vidrados, mãos convulsas
e a garrafa de soro a gotejar.

nem sentes a família, a pouca
família que te assiste. de passarem
carros nem sentes os motores.

nem sentes que ainda há luz, cautelosos
movimentos na casa, a compunção
das últimas visitas, nada sentes,

sequer que vais morrer: sentem por ti,
medem-te o pulso, olham o relógio.
nem sentes já que quase já és coisa.

6

para quê dar-te o sopro inútil,
bafo sem espelho,
em que os mortos se convertem,
a máscara mais ou menos hábil

no travesti da escrita?
já passamos a vida
em lugares paralelos, para quê ir buscar-te
a dimensão da alma

que de ti ignoramos? não é preciso
que essa pátria se cumpra, ou nenhum outro
som musical, slogan, cartaz.
morreste. és uma coisa.

nenhuma loquaz intervenção
ou invenção te ressuscita.

7

falamos das pessoas: personagens
convertidas no verso, as suas
falas são, aí, um silêncio
imaginado: a loquaz invenção

da prosódia e da técnica. o autor
ressente alguma coisa: deu-lhes
o sopro inútil, essa máscara
em que os mortos se convertem

por os reescrevermos. nós passamos a vida
em lugares paralelos, no jardim das delícias
de vários criticismos. e as margens do real
que não atravessamos? o esplendor na relva, a dimensão

tão obscura da alma?

(Vasco Graça Moura) *
*
in «Os rostos comunicantes», 1984

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